quarta-feira, 25 de março de 2009

Pag 2 Mestre Vino do Juá (Irauçuba) e sua Rabeca


No miúdo Juá, território da árida Irauçuba, um erudito - que mal sabe desenhar o nome - arranha o clássico Assum Preto na rabeca cor de vinho. Para ser fiel e risos do cicerone, "tinta vermelha de caneta" Bic. Silvino Veras D´Ávila se apresenta, para quem não é filho do povoado, como o mestre Vino, dos 91 anos, dois casamentos, 21 filhos assumidos, 40 netos e 80 bisnetos. Dali em diante, o chafurdado alpendre-oficina da casa se transforma em palco para forasteiros que chegam de longe no rastro de conhecer o fazedor de violino caboclo. E o enxame se faz. Parentes, vizinhos escorados no batente, passarinho de gaiola, menino curioso, cachorro e até quem se aproveita para pedir um auxílio. Dizer a verdade, o luthier é hoje a biografia mais conhecida entre os 1.600 habitantes do distrito de Juá e redondezas. E, sem exagero, é mais visitado que a padroeira Nossa Senhora da Conceição (festejada apenas nos dezembros), que o Vila Juá Futebol Clube e o açude São Gabriel. Foi por causa de seu Silvino, arrisca Chagas Galdino - proprietário do clube dançante Forró do Farofa -, que descobriram Juá no mapa do mundo e do Ceará. "Se não fosse a arte de mestre Vino, ninguém acertava com o caminho daqui". Graças ao dom de transformar pedaço de madeira em rabeca e carpir acordes, seu Vino virou verbete na Internet, homem de entrevistas, objeto de estudo acadêmico e mestre da cultura cearense e do mundo. Título concedido em 2007 pelo governo do Estado. Mas antes, muito antes, ele já era mestre. Popular e erudito. Erudição nordestina, brasileira. Desde os anos 30, quando fez ranhar a primeira rabeca. "Mal feita, mas cantou". E de lá pra cá, quantas rabecas teriam sido concebidas por mestre Vino? "Hein? Mais de 100", chuta, meio mouco em orelhas grandes. Foi não. Puxando das lembranças, vai buscar em 1935 o entusiasmo de ter conseguido dar vida ao primeiro instrumento e ter virado artesão. "Então, tá pra mais de 100, né?". Ora 100! "Só pra uma professora de Irauçuba vendi 20, ela fez uma orquestra que tem o meu nome (Banda de Música Mestre Vino de Irauçuba)", enche o peito e levanta a vista meio às cegas. Problema que não é motivo de resmungo para quem tem 91 anos e está no limite da estrada que já aponta o destino. Os olhos podem até ter perdido naturalmente "90% da luz", mas as pernas ainda obedecem e as mãos enxergam o martelo, o serrote, o cipilho, o escopo, a faca pra raspar e outros cafiotes separados em sacos plásticos. Cada saquinho, depois do ofício, é pendurado por ele em pregos da parede. No dia em que estivemos por lá, na manhã quente de uma segunda-feira de fevereiro e moscas de inverno, havia um esqueleto de rabeca exposto no mourão usado como mesa de criação. "Levo um mês pra fazer uma. É mal feita porque não tem maquinário, mas toca bem. Por cem mil réis (cem reais) já vendi muitas pra Fortaleza, Brasília, Sobral, Manaus, Irauçuba e até Portugal", mapeia o reconhecimento levado na bagagem alheia. O caminho que leva à cidadezinha de Juá aparece no Google Earth. Quem não souber acessar, tome a BR-222 rumo ao sertão. Em Irauçuba, o mundo inteiro indica onde fica o Juá de mestre Vino. São 20 quilômetros de estrada carroçável até chegar à rua José Fernandes Filho, numeral 388 da Funasa. Lá tem uma placa de metal, com o rosto e o nome do rabequeiro. Se chegar no fim da tarde, depois do "expediente" do luthier, procure-o, feliz da vida, se servindo de uns goles de Zinebra e miolo de pote na bodega de seu Tarcísio. NOTAS - Mestre Vino diz que já tocou em festa de São Gonçalo, Reisado, Carnaval e até no Circo Filipinho. O que pedir ela acompanha: xote, baião, maracatu, marcha, frevo, bolero, fox, mazurca, mas sua preferência é pela valsa. Nos arrasta-pés onde se danava, "toda mulher bonita era minha namorada". - A rabeca de mestre Vino leva raiz de juazeiro nas laterais, cumaru e umburana de cheiro na parte da frente e fundo. No que chama de pescoço (braço) emprega pau-d´arco. Segundo ele e o filho Francisco José, madeira já derrubada no mato que não prejudica a natureza. - No livro Rabecas do Ceará, de Gilmar de Carvalho, estão catalogados 105 rabeqieiros. A maior parte deles está em Tauá (Inhamuns) e Guaraciaba do Norte (Ibiapaba) com 16 e 12, respectivamente. - Gilmar de Carvalho entrevistou luthier em Irauçuba, Uruoca, Saboeiro, Arneiroz, Varjota, Granja, Aurora, Quiterianópolis, Baixio, Graça, Carnaubal, Viçosa do Ceará, Itapajé, Reriutaba, Boa Viagem, Acopiara, Senador Pompeu, São Benedito, Quixadá, Crateús, Iço, São Benedito, Tianguá, São Luis do Curu, Pedra Branca, Caririaçu, Parambu, Quixeramobim, Umirim, Iracema, Mombaça, Madalena, Miraíma, Quixadá, Itapipoca, Novo Oriente, Sobral, Tabuleiro do Norte, Juazeiro do Norte e Independência. - A tradição de fazer e tocar rabeca, segundo Gilmar de Carvalho, vem do "kamantché" persa, passa pelas cordas européis e por um "surpreendente e dionisíaco instrumento de aroeira, couro e tripas de carneiro, conhecido por nabim, fabricado e tocado em Crateús". - A maior parte dos rabequeiros do Ceará tem idade avançada. Mas algumas iniciativas tentam passar a tradição. No município de Itapajé, há programa de iniciação musical com rabeca; em Nova Olinda, a ONG Casa Grande é a multiplicadora. Em Juazeiro do Norte, há experimentação da luteria. E bandas como Dona Zefinha (Itapipoca) usam o instrumento.

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